A evolução do Direito Administrativo e sua correlação com as políticas públicas na era da tecnologia

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Madeline Rocha Furtado

Escritora, Professora e Consultora na área de Licitações e Contratos. Professora da disciplina “Gestão e fiscalização de Contratos Administrativos” do Curso de Pós-Graduação de Licitações e Contratos Administrativos, de acordo com a Nova Lei de Licitações nº 14.133/2021, do Instituto de Capacitação e Pós-graduação (ICAP). Professora da disciplina “Terceirização e Gestão de Contratos” do Curso de Pós-Graduação/MBA em Gerenciamento de Projetos no IBEC-UFF. Professora no Curso de Pós- Graduação em Gestão de Compras e Logística na Administração Pública e do Curso de Gestão Or- çamentária e Financeira no Setor Público, no Centro Universitário – UDF/Universidade Cruzeiro do Sul. Professora na disciplina “Terceirização e Gestão de Contratos” do Curso de Pós-Graduação em Gestão de Licitação e contratos/MBA em Governança e Gestão de Organizações. Especialista em Gestão em Logística na Administração Pública e Direito Público. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa. Autora de diversos artigos publicados em revistas especia- lizadas sobre Licitações e Contratos Administrativos. Colunista do Observatório da Lei de Licitações da Editora Fórum. Instrutora de vários cursos especializados de curta duração na área de Planeja- mento, Licitações, Contratos, Gestão e Fiscalização, Elaboração de planilhas de custos e formação de preços, Contratações Sustentáveis, Conta vinculada, e demais temas correlatos a gestão pública.

O Direito Administrativo nasce em um ambiente ideologicamente liberal,1 com forte bipolaridade m medida que buscava ao mesmo tempo, a liberdade do indivíduo e a autoridade da Administração.2 No Brasil, o Direito Administrativo como nasce sob a influência dos direitos alienígenas (direito francês, italiano e alemão), e mais recentemente, o direito europeu (União Europeia). Entretanto, o Direito Administrativo vem evoluindo no mundo, sendo marcante tal evolução no Brasil a partir da promulgação da Constituição de 1934, que, abandonando uma postura individualista, trouxe questões mais voltadas aos direitos fundamentais, como saúde, educação, previdência, etc., situação essa que se desdobrou no necessário fortalecimento do Poder Executivo e suas atribuições normativas.

1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 85
2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 130

Desse modo, é possível compreender que m medida que são conquistados novos direitos, novas demandas são institucionalizadas na prestação de serviços públicos pelo Estado, e o modo como o Estado se relaciona com a sociedade traz interferência direta no Direito Administrativo. Assim, não há como dissociar a evolução dos direitos constitucionais das atribuições do Estado e consequen- temente dos fundamentos do Direito Administrativo, ou seja, a constitucionali- zação do Direito Administrativo. Observa-se assim, uma forte conexão do Direito Administrativo com as questões políticas, econômicas e institucionais, em que o Estado é responsável por desencadear todo esse processo.
Assim, depreende-se que a máquina administrativa do Estado será a res- ponsável pela efetivação desses direitos, consubstanciada pela força cidadã da Constituição de 1988. Admite-se, então, a necessidade de uma estrutura muito eficiente por parte do Estado, tendo como consequência uma reestruturação da máquina pública. Paralelamente, surgem variadas discussões doutrinárias no âmbito do direito público acerca dos temas correlatos, quais sejam, a atividade estatal, os serviços públicos e a delegação destes, os modelos patrimonialistas, burocrático gerencial, e, na sequência, discute-se, claro, o papel do Estado, seu tamanho, a terceirização, as concessões, privatização, parcerias, entre outras.
Concomitantemente ms inovações constitucionais e m inserção de tantos di- reitos, também, evoluiu o entendimento acerca dos temas afins, com uma grande produção literária no âmbito constitucional e administrativo.
Assim caminha o Direito Administrativo: de mãos dadas com o Direito Cons- titucional. Nesse sentido, Di Pietro assegura que o Direito Administrativo nasceu junto com o constitucionalismo.3 Para a autora, a constitucionalização do Direito Administrativo existe desde a Constituição de 1934, consubstanciada pelas nor- mas específicas sobre os servidores públicos, bem como pela disposição do tema sobre a responsabilidade civil do Estado, entre outros.4 No entanto, o tema cons- titucionalização do Direito Administrativo foi sendo mais discutido a partir da Constituição de 1988, com o Estado de Direito,5 este intrínseco a um conjunto de valores, e não apenas regras.6

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 45
4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 64
5 A expressão Estado de direito significa um arcabouço de valores, e não meramente normas escritas.
6 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno, p. 27.

A Constitucionalização do Direito Administrativo trouxe repercussões sobre a importância dos princípios, destacando-se o princípio da legalidade, pois a amplia- ção deste reduziu a discricionariedade, trazendo maior amplitude ao controle judi- cial, até mesmo para algumas situações que antes eram consideradas questões de mérito administrativo,7 ressignificando a discricionariedade administrativa.
Odete Medauar8 afirma que “o Direito Administrativo se vincula m concep- ção de Estado de direito, justamente porque fixa normas para as atividades da Administração, que é um dos setores do Estado”. Decorre desse entendimento que os direitos dos cidadãos serão protegidos por meio da instrumentalização da Administração Pública. Então, como estão a efetivação dos direitos dos cidadãos e a prestação dos serviços públicos? Em que sentido a governança pública ou a falta dela, tão alardeada nos últimos tempos, se relaciona com os preceitos cons- titucionais intrínsecos no Direito Administrativo real?
Mais uma vez, invocando as sábias palavras de Medauar:9 “a Administração pública integra o contexto geral do sistema político de um Estado, refletindo e expressando as características e distorções desse sistema”. Assim, uma reforma administrativa efetiva deve ter como premissa um Estado eficiente na execução de suas políticas públicas, trazendo não só soluções e respostas ao cidadão, mas soluções e respostas céleres, ágeis e eficazes. Isso implica a discussão de vários temas específicos, como governança, tecnologia, prioridade no orçamento pú- blico, combate m corrupção, planejamento, sustentabilidade, inclusão social e, é claro, entre outras diretrizes, uma correta aplicação do dinheiro público.
As atividades administrativas são variadas, entretanto, a doutrina italiana, nas palavras de Orlando, V. E., citado por Medauar,10 divide tais atividades em jurí- dica e social, sendo a última a nossa preocupação, pois são as atividades adminis- trativas relativas ms políticas públicas sociais que trazem o acesso aos indivíduos aos seus direitos constitucionais.
Pois bem, como correlacionar tantas regras e evoluções do Direito Consti- tucional e Administrativo a um mundo tecnológico e globalizado, permeado por tantas mudanças no pensamento e na construção do conhecimento? O que es- perar das leis brasileiras e sua efetividade frente aos desafios atuais da tecnologia,

7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 297.
8 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno, p. 27.
9 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno, p. 27.
10 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno, p. 108.

do enfrentamento do mundo real e virtual? Numa remota tentativa de resposta tais questões, é possível demonstrar de forma sucinta como a legislação vem na última década aprimorando os ditames constitucionais, destacando-se, por exemplo, a publicação de algumas leis, tanto no âmbito do Direito Administra- tivo, como no âmbito de outros direitos que com ele se relacionam, como Direito Urbanístico, Ambiental, etc. Dessa forma, algumas dessas leis impactaram no mundo jurídico, essas elaboradas após a promulgação da CF/88, e, independen- temente de sua contextualização política m época, destacam-se: a Lei de Acesso m Informação, Lei Anticorrupção, Lei do Processo Administrativo, a Lei da Re- forma Trabalhista, a Lei Geral de Proteção de Dados, a Lei do Governo Digital, Lei nº 14.129/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Públicos.
Observa-se que além de todas as leis publicadas pós-Constituição, o Direito Administrativo se manifesta por outros instrumentos, como, por exemplo, os atos administrativos: decretos, portarias, resoluções, etc. Desse arcabouço normativo em constante ebulição, – aliás, este é um dos motivos da difícil codificação do Di- reito Administrativo –, pode se inferir que é o Direito Administrativo na atualidade um direito muito presente na vida cotidiana dos cidadãos.
Cabe destacar que a evolução dos direitos constitucionais tem instigado a doutrina nas análises e discussões das leis, mas tem a doutrina brasileira no Di- reito Administrativo correlacionado seus temas ms matérias de Direito Constitu- cional, em um ambiente de tantos desafios reais? É certo que sim! Muito se tem escrito sobre os temas correlatos.11 Entretanto, é perceptível que a ausência da participação social na discussão desses temas e o distanciamento entre os envol- vidos na prestação dos serviços públicos e aqueles que “teoricamente” analisam tais situações podem trazer uma clara lacuna nas abordagens doutrinárias, por vezes, pela falta de conexão com a realidade dos fatos. Nesse compasso se ob- serva a necessária discussão sobre as leis, sua aplicabilidade prática e efetividade, e em especial, uma necessária conscientização do princípio da legalidade, pois, é o norteador decisivo para a efetivação das políticas públicas.
Chama-se a atenção para o tema “efetivação dos direitos do cidadão”, pre- sente na Lei nº 14.129, que foi publicada em 29 de março de 2021, a qual traz como

11 Destaca-se excelente texto sobre o tema produzido por Juliana Bonacorsi De Palma “Direito administrativo e políticas públicas: o debate atual”.

objetivo no artigo 1º aumento da eficiência da Administração Pública, princípio
esse introduzido pela EC nº 19/98. Assim transcreve-se:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o aumento da eficiência da administração pública, especialmente por meio da desburo- cratização, da inovação, da transformação digital e da participação do cida- dão. (grifo nosso)

Como se pode ver, sendo o objetivo da lei citada a busca pela eficiência e para que essa eficiência seja acelerada e redimensionada, foram inseridos quatro requi- sitos, conforme destacado acima: a desburocratização, a inovação, a transformação digital e a participação do cidadão, observando ainda que a lei citada, conhecida como Lei do Governo Digital, traz amplo âmbito de aplicação, ou seja, para toda a Administração Pública direta e indireta federal, em todos os poderes, inclusive, Tribunais de Contas da União e Ministério Público da União, além das empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas, que prestem serviço público, autarquias e fundações públicas; estendendo-se também as ms administrações diretas e indiretas dos demais entes federados, desde que adotem os comandos desta lei por meio de atos normativos próprios. E o que isso significa? Em linhas gerais, a eficiência na Administração Pública no mundo atual passa pela necessária implementação de tecnologia digital nos serviços públicos dos governos.
Voltando um pouco ao passado, antes da pandemia da covid-19, não se tinha ideia da dimensão da importância da tecnologia na celeridade e eficiência das respostas do Estado aos seus cidadãos, e somente pela impossibilidade real do atendimento presencial dos serviços públicos prestados pelos órgãos da admi- nistração pública, sendo necessário e iminente o atendimento das demandas, viu-se a administração pública compelida a implementar serviços nos formatos digitais para atendimento imediato a quem precisava dos serviços públicos de saúde, e até mesmo de ajuda financeira para sobrevivência. Tudo isso contribuiu para o aceleramento necessário na instrumentalização desses serviços, por meio da institucionalização de serviços digitais. Porém, para além da tecnologia, para que seja efetivada uma transformação na forma de prestação dos serviços públi- cos m sociedade outros requisitos também se fazem presentes, como a desburo- cratização, a inovação e a participação do cidadão.

O artigo 3º da referida lei, estabelece vários princípios para a sua aplicação, princípios esses que fundamentarão a sua execução prática, pois são os princípios a base do sistema jurídico, e não haverá instrumentalização efetiva sem que tais valores existam e alicercem as ações. Assim, os princípios e as diretrizes de uma lei, como essa que tem como objeto o Governo Digital e a eficiência do Estado, são diversos em seu texto, porém, estruturadores da política a ser implementada. Nesse sentido, foi elencado como primeiro princípio um valor importante, a “des- burocratização” do serviço a ser prestado. Esse importante vetor exige estudo aprofundado a ser realizado em todos os critérios de seleção exigidos para a pres- tação de um serviço público de qualidade, que seja eficiente e eficaz. Avalia-se, então, nesse momento, o que deve ou não ser critério de exigência para o alcance do direito pelo cidadão, numa tênue verificação entre o que é ou não é necessá- rio, o que é exagero ou excesso de formalidades. Na sequência do texto legal são invocados outros princípios12 e diretrizes, como, por exemplo, a modernização, a simplificação da relação do poder público com a sociedade, a disponibilização em plataforma única do acesso ms informações e aos serviços públicos, inclusive por meio digital, monitoramento da qualidade dos serviços; participação social no controle e na fiscalização; prestação de contas dos recursos públicos; inte- roperabilidade de sistemas e a promoção de dados abertos; proteção de dados pessoais, conforme Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, adoção preferencial no uso da internet e de suas aplicações de tecnologias, de padrões e de formatos abertos e livres, entre outras. Nesse sentido, o Governo Digital tem na sua área de competência uma enorme responsabilidade, pois se torna um desafio a mais na consecução das políticas públicas sociais, m medida que é responsabilidade dos governos a disponibilização de tecnologias seguras que instrumentalize tais con- cessões de direitos.
Mas não basta ter leis, é preciso governança que traga efetividade aos se-
tores envolvidos, destacando-se nesse aspecto, a obrigatória prioridade política e disponibilização de recursos orçamentários dos governos, pois, sem isso, nada será possível. O artigo 14 da Lei do Governo Digital, estabelece que:
prestação digital dos serviços públicos deverá ocorrer por meio de tecnologias de amplo acesso pela população, inclusive pela de baixa renda ou residente

12 Ver o artigo 3º da Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021.

em áreas rurais e isoladas, sem prejuízo do direito do cidadão a atendimento presencial.

Então como isso é possível? O artigo 15 da citada lei faz referência a uma integração e cooperação entre toda a administração pública, o que envolve es- forços de todos os entes federativos, mas se faz necessário que cada um desse participantes priorize politica e orçamentariamente a implementação do seu go- verno digital.
A Constituição Federal de 1988 está vigente há mais de trinta anos, inse- rindo direitos na vida do cidadão, mas a pandemia de covid-19 e o afastamento do trabalho presencial trouxe de forma significativa o impacto sobre a mudança na forma da prestação dos serviços públicos, exigindo celeridade na prestação e eficácia nos resultados. Desse modo, são as leis brasileiras o norte da atividade administrativa na prestação dos serviços públicos,13 trazendo consigo a bandeira da legalidade juntamente com os princípios impostos pela CF/88. O arcabouço jurídico reveste toda a atividade administrativa, forma-se, então, o panorama normativo necessário m ação estatal, mas o que falta m eficiente efetivação dos serviços públicos no Brasil? A resposta está no artigo 1º da Lei nº 14.129/2021: a ne- cessária desburocratização, a inovação, a transformação digital e a participação do cidadão, sendo os três primeiros requisitos voltados a atos da administração pública e o último depende da vontade do cidadão, pois destaca a participação popular, esta ainda incipiente no tratamento do tema. Talvez, seja esse requisito que esteja ainda deficiente na elaboração e efetivação das políticas públicas, uma maior participação dos interessados, a completa inclusão digital nos governos, para trazer de forma eficaz os resultados esperados, e principalmente, cumprir o que diz a Constituição na entrega do direito m saúde, m educação, a moradia, entre tantos outros direitos. Não basta termos Constituição, leis, normas jurídicas das mais diversas, se não houver priorização das verbas orçamentárias na União, Estados e Municípios, para implementação de tecnologia para efetivação das po- líticas públicas, e claro, a participação popular na busca desses direitos.

13 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Segundo Di Pietro: (…) “nossa definição de serviço público como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente ms necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”,
p. 45.

Referências
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. 462p. ISBN: 978-85-5518-006-0.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31. ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. ISBN 978-85-309-7956-0.
DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Direito administrativo e políticas públicas: o debate atual. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich; SCHIRATO, Vitor Rhein (coord.). Direito público em evolução: estudos em homenagem m Professora Odete Medauar. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 177-201. ISBN 978-85-7700-785-1.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
FURTADO, Madeline Rocha. A evolução do Direito Administrativo e sua correlação com as políticas públicas na era da tecnologia. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 24, n. 277, p. 63-70, mar. 2024.